Queridos
Dani e Mari, meus filhos
Piti e Didi, minhas sobrinhas
Meu querido Pai, seu avô, não pertence mais a este mundo, mas suas lembranças ficarão para sempre. Recordo aqui uma passagem de minha vida com ele, ocorrida uns 2 a 3 meses depois dele completar 91 anos de idade:
“O Papai veio de novo, ontem, de surpresa, almoçar comigo e com a Anna, aqui em casa. Deve estar carente ou despedindo-se ou com alguma arte que ainda não descobrimos. Ele é muito arteiro e não dá ponto sem nó.
Conversamos muito, estava todo falante e rompante como sempre quando está bem de saúde e contente.
Depois do almoço e do papo disse que ia para a casa da namorada dele, para jogar um pouco de “buraco” com as amigas e para assistir televisão. Com essa chuva e esse tempo não tem coisa melhor do que ficar em casa depois de já ter tratado dos negócios, hoje cedo.
Essa é uma das grandes vantagens da velhice, disse sorrindo e me incentivando a estimulando a ver o lado bom da aposentadoria.
A Anna tinha médico e então eu fui levá-lo na estação do Metrô que, segundo ele, podia ser praça da República que é mais perto, mas fiz questão de levá-lo na Sé pois assim evitava uma baldeação. Meu tempo estava exíguo como sempre.
Na verdade eu gostaria de ter um chofer de origem africana com camisa bem branquinha e uniforme azul marinho, jovem, simpático e com dentes brancos impecáveis, lutador de karatê, luta livre ou boxe, com bonézinho branco e um super carro Mercedez de cor branca ou prata para levá-lo em casa. Esse sempre foi o sonho dele. Ouvi isso inúmeras vezes.
“Quando eu ficar velho e rico terei um chofer e um carrão, dizia ele.”
Como não tenho, levei-o no meu carro preto mesmo, dirigido por um chofer velho, de cabeça e barba brancas, caolho, aposentado, calça preta e paletó xadrez e que de lutador só tem os rounds da vida.
Chegando na Sé ele desceu rápido do lado ruim, ou seja, meu lado estava na calçada e o dele na rua, mas me impressionou sua lucidez soltando antes o cinto, comentando que o farol vermelho é curto e perguntando se podia descer sem problemas com alguma moto. Desceu num ápice e movimento de menino e, como devia ser, passou na frente do meu carro alcançando a calçada no ato.
Veio na minha janela despedir-se. Pedi a benção e comentei: cuidado por aqui pois esta região é muito perigosa com muitos trombadinhas.
Eu observava aquele borburinho de gente num vaivém sem fim, fugindo do mau tempo e correndo contra ele, implacável tempo que se esvai rapidamente. Gente feia, pobre, mal vestida, a maioria trabalhadora honesta, trabalhadora e humana, mas, infelizmente, alguns poucos, mal encarados e agressivos.
Estava preocupado, afinal um velhinho de 91 anos, bem vestido, de terno claro, malha de lã branca, sapato lustrado, cabeça reluzente com um cabelo longo, branco e lisinho, pele impecável, bolso cheio de dinheiro pois sempre anda com pelo menos R$ 500,00.
Estava chateado de não poder levá-lo em casa e ter de deixá-lo exposto a esses riscos da cidade grande. Comentei com ele meu descontentamento com aquela situação.
Ele sorrindo me contestou: “…este pedaço eu conheço desde jovem, não tem perigo algum, passo por aqui toda hora… esqueceu que sou lutador?”.
Então encheu o peito, levantou a cabeça, desabotou o paletó, colocou a mão esquerda no bolso para “guardar” a grana (já falei mil vezes para ele não fazer isso pois chama mais atenção), deu-me as costas e caminhou como um nobre com passos firmes e ritmados.
Senti um arrepio na espinha, meus olhos encheram-se de lágrimas, e não vi mais aquele baixinho franzino, um velhinho de 1,60m, 60kg e a esta altura super vulnerável. Ali caminhava um ser altivo, forte, seguro de si, um campeão de luta livre, mais forte que Hércules ou Átila, um homem de fibra que jamais seria abordado por simples mortais mal intencionados.
Os carros de trás buzinaram, eu “acordei”. Parecia que aqueles segundos ou minutos tinham sido horas. Fui embora com a certeza de que ele chegaria em casa bem e iria se divertir ganhando mais uma partida de “buraco”, curtindo muito a vitória sobre os adversários. Depois assistir TV, xingar um pouco os políticos e os banqueiros durante o noticiário do dia e dormir gostoso durante a novela.”
Esse era meu Pai, seu avô, um homem que adorava viver, curtia a vida e a viveu intensamente.
São Paulo, 16 de agosto de 2010. Paulo Helene